Holocausto Invernal

19/06/2023

Uma semana inteira de pratos de metal sujos fora do alcance, seguido de mais duas semanas de pratos invisíveis, apenas um chão sujo de concreto, um purê de batatas tão escuro que se provava desnecessário de ser digerido.

Uma foice de duas mãos, uma picareta, carrinhos de mineração de ferro fundido, objetos de trabalho simples que nas mãos de uma carne faminta, perdida na dor e desprovida de sono, se tornam desafios de resistência diários.

Os maquinários antropoautomatos de chumbo puro reluzentes com olhos vermelhos e suas metralhadoras soviéticas Papasha. Brilhantes e novos em folha, mas distantes, sempre com armas eretas e olhos predadores inexpressivos, uma cabeça cúbica com leves antenas de aço sobre as cabeças. Andam nus, não precisam se destacar, não sentem vergonha, não sentem remorso. Não escravos, não são o que pensam que são.

Archie e Zweimer desmaiaram carregando um dos carrinhos da mina central de silício do norte, estavam há semanas sem nenhum sustento ou alimentação, pensamos em os ajudar, mas se soltarmos os nossos carrinhos, acabaríamos iguais a eles. Assim que os maquinários perceberam que Archie e Zweimer estavam empacando a fileira, puxaram suas metralhadoras e os executaram ali mesmo. Ficamos surdos por uns cinco minutos.

Logo, sistematicamente, outros maquinários chegaram, e retiraram os corpos, trazendo consigo mais dois trabalhadores forçados tão incapazes igualmente de ficar em pé quanto Archie e Zweimer. Não conhecia eles, só sabia que foram metralhados. Não podíamos conversar com ninguém, se falássemos por mais de um minuto, éramos forçados a trabalhar fora do descanso, puxados do chão em que somos acorrentados e vigiados por maquinários que nos dão insônia. Privacidade sumiu há três anos. Não podemos respirar, não podemos falar, não podemos sequer olhar o mundo lá fora.

Todos odiavam menos o trabalho de limpar a neve dos refletores da casamata. Era o único momento de nossa prisão em que podíamos nos proteger do frio com trajes quentes, ao invés do mesmo pijama velho sujo e cinza-escuro com números de série impossíveis de pronunciar. Podíamos olhar o ambiente e podíamos, mesmo que com máscaras abafadas, conversar um pouco.

Era difícil falar de estômago vazio e com reumatismos densos, todos estavam desenvolvendo a visão turva, a surdez e a esquizofrenia do maquinário. Tudo parecia girar em torno do medo deles. Eles não falavam nada, mas sempre sabem onde você está e o que está fazendo. Gerar filhos não é proibido, é impossível.

As mulheres grávidas sobreviventes da guerra foram assassinadas pelos maquinários instantaneamente, brutalmente, sem chance de sobrevivência. Vi com meus próprios olhos, um lapso de gritos e desespero, uma última conexão com a prole ainda não respirante, e então... vermelho, e tudo acaba. Sujas sob os escombros dos tanques e bombardeios, tudo acaba.

Todos foram castrados, todos os homens e mulheres impedidos pelos maquinários de gerar qualquer ser vivo semelhante a nós. Nada de novos humanos, era o que diziam os maquinários voadores dos distritos devastados, me disseram rebeldes recém-castrados. Propagandas para os próprios maquinários, "Nada de novos humanos". Nunca entendi o motivo disso.

Ainda não cicatrizou totalmente minha castração, ainda sangra quando faço muito esforço. Eles cortavam os homens sem piedade, sistematicamente e sem anestesia. Com as mulheres era pior, se conosco, eles apenas cortam nossos escrotos, com elas, eles arrancam os dois ovários e as afastam dos homens por um mês para garantir que não sobre nenhum vestígio de óvulos. Um processo longo, traumatizante e impotente.

Nunca consegui conversar com nenhuma mulher da casamata, éramos proibidos de falar com pessoas de sexo oposto. A humilhação era grande para todos, homens que amam homens e mulheres que amam mulheres se viam cada vez mais incapazes de se voltar contra os maquinários, não conseguiam falar, suas cordas vocais eram removidas junto com seus invólucros da vida.

Os maquinários já serviram um dia os conservadores britânicos, para oprimir e calar sistematicamente quem fosse inimigo do estado. Hoje em dia, todos são inimigos do estado, mas ainda possuem vestígios da programação dos cientistas do partido conservador da primeira-ministra Maveret Teatchern e do presidente pós-americano Roland Megan.

O slogan da guerrilha contra os opositores era "No gays, no fight, only votes". Ironicamente, o slogan que os maquinários usaram na tomada da Casa Branca enquanto Roland Megan estava num bunker com um amante homossexual. Hipocrisia mecânica.

Lembrava disso tudo antes de ser capturado em Vladiscow onde estava cobrindo a derrubada do Muro de Ferro que ligava a Rússia à Europa. A URSSCBC estava me deixando rico à cada minuto transmitido. Só era uma pena que riqueza não me salvaria daquele inferno de chumbo. Meus PhDs em jornalismo e história social não me salvariam daquilo.

Nem sei mais onde estamos, só sei que é frio, um inverno eterno, branco e sem fim. Não lembro de muita coisa, estava com uma das pás tirando a neve. Tive um lapso de adrenalina... gritei alto e de repente o maquinário que me vigiava estava caído no chão todo destruído. Peguei sua metralhadora Papasha e comecei a distribuir disparos em outros deles. Soo o alarme, e todos os outros 65 trabalhadores externos famintos lutaram, pegaram uma arma e reagiram. Alguns começaram a correr na direção das cercas. Não eram eletrificadas, mas eram extremamente afiadas e cheias de arames farpados de aço inoxidável.

Uns sete se amontoaram num ponto da cerca e ficaram presos ali. Eu não fui o primeiro a correr naquela direção. Não tenho mais escapatória. Estava gritando de dor e uma agonia brutal, gritando tão alto que abafava o som dos tiros dos outros rebeldes estava gelado demais aquela neve no meu rosto e todos aqueles corpos farpados em cima de mim e debaixo de mim, dois estavam mortos decapitados na cerca os outros se debatiam e gritavam de dor junto comigo.

Tentei pular eles para fugir, mas meu pé se amarrou e se torceu cortando nos arames. Fiquei tombado e sangrando ali por vários minutos. Nem a dor da minha cicatriz de castração abrindo chegava perto daquele tornozelo sendo cortado aos poucos pela tensão que os outros homens presos criavam se debatendo estando presos como eu. Eu não estava ouvindo nada, só de ver meu tornozelo exposto naquela neve como um monte de retalhos de carne, eu já me retorcia em estrondos internos brilhantes de agonia indescritível. Já escutava bombas caindo em cima de mim e me matando aos poucos, uma lentidão, meus olhos sangram, mas incrivelmente, à medida que todos que libertei passavam por cima de mim, homens e mulheres brutalmente explorados e privados de suas essências, desejos e privacidade, homens e mulheres privados do futuro, privados da infância, e privados da paz.

Todos pisando naqueles corpos que estavam os protegendo da cerca, ficando com os pés sangrentos naquelas pilhas, não olhavam para trás, como poderiam? Nunca puderam conversar sobre nada, agora, era o curral dos loucos aberto. A sirene tocou. Péssima hora para minha audição voltar, estava espirrando carne pelas ventas enquanto meus olhos perdiam um pouco da eficiência, enquanto meus pulmões penavam para funcionar. E agora, os maquinários estavam vindo pelos terraços da casamata, uma pirâmide da morte, todos se posicionando com metralhadoras automáticas anti-infantaria de altíssima potência, usados nas incursões vietnamitas.

Fiquei surdo mais uma vez, os disparos eram tão altos e tão repetitivos, sentia como se à cada segundo, seis pessoas morressem. E era isso que estava acontecendo. Todos que estavam fugindo na direção da brecha da cerca estavam sendo alvejados e despedaçados pelas armas. Não estavam só sendo alvejados para detenção, estavam sendo destroçados de propósito, vi uma das mulheres que havia me falado da condição de Archie e Zweimer ter a cabeça explodida por uma rajada, e depois seu corpo ser dilacerado de todas as formas pelo mesmo atirador.

Um homem teve o corpo cortado ao meio pela espinha por um segmento de rajadas, jogando um enorme ensopado de tripas em cima de mim e mais dois homens ainda vivos que seguiam se debatendo. Antes, agora completamente encharcado de ser-humano. Tentei olhar para o lado de fora, todos os prisioneiros e escravos correndo na neve e caindo em segundos, alguns já estavam exaustos antes mesmo de pular a cerca. Uns dois ou três caíram praticamente mortos, e então, eram alvejados nas costas. Os que foram mais longe, foram os agasalhados, os não-agasalhados morreram sem nem chegar na cerca. Pobres diabos...

Ainda não fui alvejado por nenhuma metralhadora, apesar de ter sido quase alvejado várias vezes. Todos já estavam morrendo. Todos estavam com seus pedaços para todos os lados, incluindo em nós. Mas eu olhei no horizonte fora da cerca, tentando limpar aquele banho de humanidade visceral do meu rosto, e vi um prisioneiro correndo, pelo grito audível há quilômetros, era uma mulher, não reconhecia quem era, mas ela estava há alguns pés da liberdade total.

Ela corria confiante, e certa da vitória. O disparo foi efetuado, era um fuzil anti-material, reconhecia o som dos campos de treinamento dos guerrilheiros anti-soviéticos punks, e estava com cargas explosivas... eu só vi neve subindo alto, junto com o que restou de um ser humano livre voando pelos ares em pedaços vermelhos sem vida. Se estão nos matando com tanta violência, por que nos aprisionar e nos escravizar? Podiam só... nos matar de uma vez. Por que todo esse esforço de nos castrar, para simplesmente nos matar no fim?

Maquinários estavam se aproximando com suas Papashas, logo nos viram nos debatendo cobertos de sangue.

Já aconteceu de você saber que está a um pé da morte, um pisão da morte, e não ter tempo sequer de falar, exprimir ou comentar algo? Sem tempo sequer de mandar um "vai se foder"? Você se vê a um palmo da morte, e não consegue fazer nada, só uma careta ridícula, pois está muito assustado para fazer qualquer outro tipo de expressão, e você congela, o tempo para, e você só vê uma imagem eterna daquilo que está o matando, e não sabe dizer se é uma coisa ruim, boa, uma bosta, uma dádiva, você só vê uma imagem indecifrável.

O robô pôs o cano na minha cabeça, acho que não valeu à pena... mas o que havia para nós lá fora? Somos seres incapazes de qualquer coisa nova, estamos perdidos, e não teremos novas gerações. Estava tudo perdido, mas ao menos, teve um pico de adrenalina que fez tudo valer à pena. Retiro o que eu disse, valeu totalmente à pena foder a cara desses pedaços de metal sem emoções racistas de merda... acabamos todos abatidos, mas me sinto orgulhoso de ter respondido pelo menos uma vez, ao invés de só obedecer e aceitar.

Foi tudo tão rápido, nem sei de onde tirei toda aquela energia para responder, mas foi divertido enquanto foi benéfico. Espero ir pro céu, se eu for pro inferno e encontrar meu pai, ele com certeza não vai perder a chance de dizer que perdi minha vida estudando essas coisas que ninguém se importa. Quem diria que a minha morte foi toda culpa dele? Queria poder ter postado alguma postagem de merda com uma montagem dele fazendo uma gulosa em Roland Megan. Me daria uma paz de espírito... mas não importa mais sonhar. Tudo estava tão devagar que poderia dormir antes de enfim, dar adeus à Sibéria, ou seja lá que lugar é esse. Do jeito que o mundo está, pode ser o Egito e não sabemos.

Eu ri, mesmo morrendo de dor, abandonado, coberto de sangue e com uma metralhadora automática na minha cara, eu ri.

CRAWW


Considerações finais

Em parceria com o Caldeirão Mágico, esse foi mais um conto na categoria "Contos de Inverno" e em breve teremos mais, então, nos aguardem.

Este conto pertence ao autor Vitor Silva Conceição, a obra e todos os direitos estão reservados ao autor. Plágio é crime! 

Sobre o autor

Meu nome é Vitor Silva Conceição, mas pode me chamar pelo meu pseudônimo "Punkrock Dude" ou "Cara do Punkrock".
Eu tenho 18 anos, sou um homem hétero autista de nível brando, e amo cinema, café com leite e heavy metal. Prefiro não falar sobre onde ou as condições de onde moro. Só digo que sou brasileiro. E comecei a escrever fantasia tradicional, e quando deu no saco, fui tentar vertentes mais grotescas e fantasias mais científicas e distópicas.

Hoje, estou produzindo uma trilogia, mas tenho vários contos, poemas e novelas publicadas no Wattpad, a maioria incompleta, mas uma boa parte completa. E meu tipo narrativo se foca muito mais nas margens, na subcultura, o esgoto da sociedade, a invisibilidade de um futuro modernista exausto e incapaz de estabelecer boas vibrações. Um mundo onde não se vive sem ajuda de Demônios, e onde todos querem um pedaço de você, incluindo você mesmo.


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